Terça-feira, 18 de Maio de 2004
"Lembro-me que era um dia que herdara a chuva desde a madrugada, pequenos cristais escorregadios e efémeros nas ervas que começavam a crescer. Havia ainda um cheiro a Verão. Tinha acordado contra o cinzento do dia que invadia o quarto. Devia estar atravessada na cama de olhos postos no tecto, como acontecia quando estava sozinha. Eu e o Manuel estávamos, mais uma vez, zangados. Foi a fome que me levantou.
Depois de uma primeira olhadela para o fundo do saguão, transformado numa orgia desavergonhada de capim onde outrora seria um jardim interior, rumei à cozinha à procura de qualquer coisa quente. Teria comido flocos? Uma sanduíche de queijo, com a meia de leite a ferver? Não tenho a certeza o que comia quando decidi fazer sopa. Queria fazer uma sopa das antigas, como já não comia há muito.
A ideia tomou conta de mim. Concerteza que fiz um recenseamento no minúsculo frigorífico nunca gostei de frigoríficos grandes, o interior, geralmente vazio, já que era raro cozinhar, aquela luz crua, angustiavam-me -, o que me poderia ser útil para a sopa, a sopa que quando era miúda comia, sentada num mocho à volta da lareira, em casa dos jornaleiros da pequena quinta dos meus pais. A busca devia ter sido rápida e nada animadora: provavelmente para além da manteiga e do leite, um ou outro chocolate, yogurtes fora de prazo e gelo no congelador.
Tinha de ir à mercearia do bairro, ao sítio, que aos domingos era domingo, recordo-me agora -, estava aberta durante a manhã. Tomei banho, e já depois de estar no quarto para me vestir, vi-me projectada nua no plano do espelho que o Manuel me tinha oferecido uns dias antes ou há meses? Foi uma sensação muito estranha aquela de me ver nua, em corpo inteiro. Foi como se tivesse sido a primeira vez que me tinha visto nua.(...)"
Falei-te ontem das folhas que ando agora a juntar. Deixo-te hoje o início de uma das folhas. Diz qualquer coisa, mesmo que seja duro para mim.
_____________________________________________________ Jó