Sexta-feira, 19 de Março de 2004

Conversemos então

Conversemos então, o mais que possa ser sereno, sobre a situação.
Retenho na memória, que para sempre me acompanhará, a tua rigidez serena dentro do esquife que me pareceu ridiculamente pequeno, e mais pequena, acanhada mesmo, asfixiante, aquela capela mortuária onde te depositaram.Na capela mortuária da capela do Sr. dos Aflitos, no terreiro onde tantas vezes brinquei com os filhos da srª Beatriz e do sr. José, jornaleiros dos meus pais, lembras-te?
Estavas esmagado pelo espaço, pelas flores de obrigação, pelo zelo das tuas tias, a direita e a por afinidade, e outros olhares que não recenseei.
Se dissesse que não te achei confortável, sei que te ririas fechando os olhos e soltando as tuas gargalhadas, ultimamente tão murchas, mano. Tinhas desistido, eu sei, e agora sei mais do que achava que sabia.
Mas também não posso dizer que te encontrei sem dignidade. A tua barba, a tua calva, e aquela camisa branca que a Nézinha te obrigou a comprar, num longínquo Agosto, em Marrocos, davam-te um ar distinto no meio do kitch. Lembrei-me da teu estaminé e do malfadado destino de te acomodares no meio da confusão.Faltava-te o cigarro a esmorecer nos dedos, a definhar em cinza como tu deixavas definhar o ânimo.
Cá fora vi rostos que reconheci com vinte, trinta anos antes. O Gil da drogaria; o Manuel Ferrador que nos tratava dos patins; a Inês da farmácia, filha do srº Cândido - está mais magra nunca a conheceria se não fosse a Cila mãe referenciar; o Guerner e outros de que não me lembro o nome mas que não estranhava as feições.
Os teus filhos com a serenidade intacta por fora, atentos, porque tinham de tratar de ti. A Ana desfeita e que me desfez com um abraço sentido quando “te desciam à terra”, encravando-me na garganta que lhe queria dizer: tu estavas cansado, ias descansar, e nós o que podíamos fazer senão obrigar-te a ficar, todo a acender e a apagar, na nossa memória? Nunca foste um herói, nunca nos serás servido morto, como escreveu o Reinaldo Ferreira num poema,que só tu sabias recitar.______________Jó
publicado por João de Mello Alvim às 23:05

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